terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os Donos da Terra

A situação ainda parecia sob controle quando o Delegado Jorjão – um tatu de óculos de fundo de garrafa – chegou ao local. De um lado, um grupo de pássaros e aves liderados por uma saíra azul chamada Zuleica. Do outro, um grupo de porcos-do-mato comandados por Tião Javali, famoso agitador da região. E no meio dos dois, sem entender absolutamente nada, o Peteleco – o burrico blasé e esquelético de Nhô Aristides Torres - que com o arado preso as ancas para iniciar o trabalho no campo, viu-se impedido pela manifestação dos dois grupos.
- Não vamos deixar passar! – bradou o Tião Javali se colocando à frente do Peteleco.
- Isso mesmo! Go home imperialistas do agronegócio! – acrescentou a Zuleica encarando o pobre do Peteleco que estava ali só pra cumprir com as suas obrigações de empregado da fazenda.
O Delegado Jorjão, ajeitando e tirando a terra dos pesados óculos, quis entender o motivo do litígio.
- Dr. Delegado Jorjão, estamos aqui para impedir que o Peteleco inicie o arado desse punhado de terra da Fazenda Pé-de-Vento. – disse o Tião Javali com um palito de dentes no canto da boca.
- E por que motivo o cidadão quer impedir o serviço desse burro? – perguntou o Delegado Jorjão para uma moita que tinha a silhueta do porco Tião, pois não enxergava direito mesmo com as lunetas que levava na cara.
- Pois então, Doutor Jorjão – disse o Tião agarrando o braço do Delegado Jorjão. - A questão é que o dono desse aí (disse com desdém apontando com os beiços para o Peteleco) quer arar mais esse tanto de terra para plantar milho, batata, beterraba e sabe-se mais lá o quê que há de sementes nos alforges desse burro magrelo. E nós não vamos permitir essa invasão!
- É isso mesmo! – tornou a repetir a Zuleica, enfiando a ponta da asa na cara do Peteleco que, sem se importar com o discurso, pastava calmamente no meio do tumulto.
- “Invasão”? Mas de que invasão o senhor está falando? – questionou o Delegado Jorjão à fala do Tião Javali, falando com um toco de árvore que tinha uma silhueta também muito parecida com a do porco agitador. E completou: – As terras não são de Nhô Aristides? E antes de serem dele, não eram de seu pai que as herdou de seu avô? Por que ele não poderia plantar o que quisesse aqui até onde as cercas sejam suas?
- Poderia, Doutor, não fosse o fato de essas terras antes de pertencerem à família de Nhô Aristides, terem sido sempre dos porcos-do-mato que andavam por essas regiões fugindo dos índios. Na verdade, o que estamos exigindo em reparação aos anos de exploração de nossa terra, é que esse punhado de terra que restou seja devolvido aos de nossa raça.
- É isso mesmo! – gritou com entusiasmo a Zuleica, abaixando-se para olhar bem na cara do Peteleco que continuava pastando alheio àquilo tudo.
- Maaaaaas, só um segundo. – se tocou a Zuleica da besteira que fazia ao ser alertada por um tucano meio depenado. - Essas terras na verdade sempre foram dos pássaros e aves que enfeitam o céu com as suas cores e enchem o ar com a música de suas gargantas. Se há alguém que mereça receber terras em reparação aos danos provocados pela família Torres, somos nós, as aves.
- É isso mesmo! – gritaram em uníssono biquinhos-de-lacre, sabiás, coleirinhos, curiós, tangarazinhos, uma saracura-matraca, uma maria-preta-de-penacho e pelo menos uns três ratos que usavam bicos postiços para se passarem por pássaros.
- Pela ordem, Delegado. Pela ordem! – Disse o Tião, interrompendo com brevidade a salva de asas, com medo de que as aves levassem as terras no grito, ou melhor, no pio.
O Delegado Jorjão, que agora interrogava uma pedra pensando ser alguém do grupo dos porcos, nem se deu conta da confusão que estava para começar bem debaixo de seu focinho.
- E por que motivo vocês haveriam de querer terras de volta? Terras que nunca foram de vocês, diga-se de passagem. Ou já não diz a música que “a Praça Castro Alves é do povo como o céu é do azulão”? Vocês já têm todo o céu pra vocês, por que fazer questão de um pedaço de chão? – Disse o Tião Javali para delírio do seu grupo de manifestantes.
- Alto lá, Senhor Tião! Primeiro que a música falava de avião, e não de azulão, um dos nossos. E depois, tirando os insetos que também voam, nós pássaros não temos como comer nem beber outra coisa no ar, pois nosso sustento também vem das coisas que nascem e correm na terra. – Respondeu à altura, a Zuleica, para delírio dos pássaros, dos ratos e, agora, de três urubus que apareceram com grandes expectativas, senão de ganho de terras, pelo menos de um defunto fresco de qualquer lado da revolução.
- Isso foi um sofisma? Ora se a senhora, Dona Zuleica, não é uma grande farsante, querendo com a sua retórica bem arranjada pela sonoridade do seu canto, confundir toda essa massa iletrada, incluindo o Delegado Jorjão e seus policiais. – Disse o Tião com a pata em riste na cara da Zuleica, sem se dar conta de que acabara de ofender também a autoridade com a sua frase mal colocada.
- E o senhor anda a querer terras pra quê, Tião Javali? Já não há lama suficiente nesse país para todos os porcos da sua laia? Ou faz isso que é pra ver caber todas as antas e capivaras que estão aí fantasiadas de porcos entre os seus?
- É isso mesmo! – gritaram aos pássaros, os ratos e os três urubus.
- E a senhora que leva em sua comitiva ratos e cobras que se cobrem de penas e disfarçam a fuça com bicos postiços? Faça-os voar que abrimos mão das terras de nossos ancestrais.
- É isso mesmo! – gritaram as antas, as capivaras e novamente os três urubus que, afinal de contas, não tinham lado na disputa pela terra. Independente de quem a levasse, desde que houvesse pelo menos um morto, para eles era lucro garantido e sem nenhum esforço.
- Que ancestrais o quê, seu porco fedorento? Onde um porco mete as patas, só brota sujeira. Deixasse por sua conta, um jardim florido se transformaria em chiqueiro em menos de um dia. Vocês só têm utilidade depois de limpos, assados e servidos sobre a mesa.
Tião Javali ouviu o que disse a Zuleica, e não gostou. Raspou a pata direita num sulco de terra já aberto pelo Peteleco e, bufando, partiu pra cima da saíra abusada que, voando ligeira, saiu da frente e voltou-se sobre ele desferindo bicadas certeiras em suas orelhas. A partir daí foi um tumulto generalizado entre os porcos e os pássaros. Os ratos, as capivaras, as antas e as cobras, como era de se esperar, não entraram na briga, enquanto os três urubus se colocaram no galho de uma árvore e já começavam a esticar uma toalha de mesa quadriculada para um piquenique que prometia ser bem servido quando os quatro cães da diligência do Delegado Jorjão trataram de colocar ordem no agronegócio, distribuindo latidos, mordidas e bombas de gás lacrimogênio no meio da multidão. Os pássaros rapidamente voaram para longe, enquanto os porcos correram com os olhos cheios d’água de volta para a floresta.
Quando a fumaça dissipou, os três urubus que aguardavam ansiosos pra ver o resultado do conflito ficaram decepcionados por não haver nenhuma vítima fatal. Os ratos, percebendo a gravidade do novo cenário, começaram a sair de fininho, sendo imediatamente seguidos pelas cobras. As antas e as capivaras voltaram juntas pro rio comentando o resultado da última rodada do campeonato de São João do Quentão.
O Peteleco, que ficou esquecido de todos, até da Zuleica, muito antes da confusão terminar em briga, já ia lá longe no arado, pois sabe que, chova ou faça sol, é obrigação do trabalhador da terra seguir com as suas tarefas do dia.
O Delegado Jorjão? Segundo apurei com o Peteleco mais tarde, soube-se que ficou até depois do ocaso tentando levar preso um enorme cupinzeiro que ele imaginou ser um porco que não queria, e nem poderia, responder às suas perguntas para esclarecimento do caso.

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